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Cor. Estilo e Direção em A Fantástica Fábrica de Chocolate



Um filme, quando clássico, pode ganhar diversas adaptações, versões e continuações, e tudo bem, não? Muitas destas vezes a história se mantém, mas a escolha estética toma um rumo completamente diferente. Isso só mostra que a visualidade no audiovisual - e muito da vida - depende de interpretação e repertório.


Adaptação cinematográfica

Para quem não sabe, o roteiro de A Fantástica Fábrica de Chocolate é uma adaptação de um livro infantil de 1964, escrito por Roald Dahl. Hoje, as adaptações são comuns, como pontua Linda Hutcheon em seu Uma Teoria da Adaptação (UFSC, 2013): estão na televisão e na tela do cinema, no teatro musical e no teatro dramático, na Internet, nos romances e nas histórias em quadrinhos, e até nos parques de diversões e videogames. A relação entre literatura e cinema se dá desde o século XVIII, e muito tem a ver com o surgimento da prensa, que tornou a literatura popular. As adaptações também foram usadas durante o século XIX e início do XX para atrair um público mais selecionado ao cinema: enquanto a massa trabalhadora preferia os filmes mudos por não haver a barreira da linguagem, as elites preferiam os filmes adaptados, onde o diálogo era parte central da narrativa. Vários autores discutem, no entanto, sobre como as adaptações traduzem e transformam o texto original em outra obra - que deve funcionar sozinha, com o texto de origem apenas como complemento.


A primeira adaptação

1971 marca a primeira adaptação do amado livro infantil de Dahl para os cinemas. A história de Mel Stuart é uma adaptação fiel à obra literária - e que teve até o autor original como um dos escritores do roteiro. Se levarmos em consideração o contexto histórico - Guerra Fria e Guerra do Vietnã -, a fábrica (maravilhosa, mágica, tecnológica e colorida) é um respiro para quem assistia, um desejo de um mundo melhor e mais sensível. A escolha de cores no filme também expressa esse mesmo sentimento: uma cidade cinza no inverno, com pessoas que se misturam com suas escolhas de trajes do lado de fora e, dentro da fábrica, um mundo colorido, onde a imaginação é o limite.


Colorido, convidativo, saboroso e perigoso

O que esperamos de um ambiente pautado em fantasia? Os mistérios que cercam a fábrica que produz os mais deliciosos doces do mundo e que não contém funcionários (humanos, pelo menos, que nunca são vistos entrando ou saindo) e que pode apresentar qualquer coisa - qualquer mesmo - surpreende crianças e adultos. À primeira vista, tudo parece irreal, de mentira. Mas aos poucos vemos que tudo pode ser comestível e adaptado, e as cores - sempre vivas e dentro das paletas de primárias e complementares - convidam à experimentação, quase como uma viagem psicodélica. No entanto, essas cores também entregam um lado sombrio: normalmente as cores vibrantes na natureza querem dizer perigo, e vemos essa concepção ao decorrer do filme.


Cores e personalidade

O ponto de contraste do interior natural da fábrica (considerando as atividades cotidianas do lugar) é o anfitrião, Willy Wonka (Gene Wilder) que, mesmo ainda na paleta de cores gerais, utiliza um violeta profundo, quase púrpura em seu paletó. De acordo com Eva Heller em A Psicologia das Cores (Gustavo Gili, 2017), esse tom profundo de violeta representa não só a riqueza e a nobreza - pelo preço do pigmento, um dos mais caros - mas também o místico e o sóbrio. E podemos observar na interpretação de Wilder um Willy Wonka sombrio, um tanto sarcástico, seguro, poderoso e que possui um alto nivelamento moral - punindo as crianças que não se comportam, a personificação da cor. Por outro lado, temos o contraste do violeta de Willy com a pele laranja dos Oompa Loompas, seus assistentes, que possuem uma personalidade recreativa e social - como a cor indica. O laranja também indica perigo, e é também a cor da transformação. Desta forma, temos aqui, assim como no caso de Willy Wonka, a personificação da cor: os Oompa Loompas são recreativos e sociáveis com suas canções e coreografias, mas também são agentes de transformação e perigo a não impedirem as crianças mal comportadas de sofrerem as piores consequências possíveis.


A fábrica no século XXI

A versão do conhecido e marcante diretor Tim Burton, de 2005, revela uma nova camada possível na história: com o advento do cinema digital e dos efeitos aplicados em pós-produção, a fábrica se torna mais complexa. Se em 1971 adaptações foram feitas para que o filme combinasse a criatividade de seus idealizadores ao orçamento e à tecnologia da época, em 2005 o cinema digital permitiu a ampliação de cenários e o alcance de cores e formas que surpreendem até os mais criativos. Dentro do contexto histórico, no entanto, o princípio de esperança é mantido: em uma sociedade em que os computadores e, sobretudo, a internet e os games já imaginam tudo por adultos e crianças, a fábrica vem trazer essa retomada da imaginação humana como principal motivadora de sonhos.



Willy (Queer) Wonka

Enquanto na obra de 1971 o principal ponto estético é a cor, em 2005 essa relação entre estética, narrativa e personalidade dos personagens se dá através de algo mais profundo. Johnny Depp entrega ao Willy Wonka de Burton - uma das mais frutíferas parcerias cinematográficas - características quase que andróginas. Como observado por Paulo Félix em seu artigo Willy (Queer) Wonka: um estudo sobre o personagem de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” de Tim Burton (que pode ser lido aqui), a estética queer está presente por todo o filme, junto à personalidade um tanto infantilizada de Wonka, como uma criança queer crescida: no seu corte de cabelo dândi vitoriano, as cores e o corte nas vestimentas e a forma como Depp movimenta seu personagem. É claro que o ar sombrio e um tanto desesperançoso continua nesta versão: há um ar um tanto quanto macabro até na primeira aparição do personagem, com marionetes mecanizadas, uma canção que lembra a dos Carnivals de beira de estrada.


Oompa Loompas

Na primeira versão do livro, Dahl descreve os pequenos habitantes e funcionários como pigmeus africanos e, obviamente, isso despertou uma polêmica sobre a representação de mais um povo de África que é escravizado pelo bem do homem branco. No filme de 2005, esses pequenos homens - todos interpretados pelo mesmo ator, o queniano Deep Roy - são apresentados como habitantes de uma ilha que, para fugir dos perigos e receber o que mais desejam, o cacau, aceitam trabalhar na fábrica. Mesmo que uniformizados, não vemos mais cores como elementos principais da personalidade, já que em cada situação eles estão vestidos com uniformes diferentes, e seu tom de pele - que não é mais laranja - não determina visualmente seu comportamento esperado. No entanto, são personagens sarcásticos e travessos, mesmo que vistos como simpáticos e convidativos: quando iniciam canções, são sempre após a punição de alguma criança de mau comportamento, com elementos na letra que atacam a criança em questão. Tudo conversa com a estética de Willy Wonka, quase como uma extensão do seu ego: o espaço, os elementos e até seus funcionários, que se vestem como seu patrão, o colonizador.


Para histórias como A Fantástica Fábrica de Chocolate, a visualidade é o fator dominante, mais importante até que a própria narrativa, e é fruto da criação sem freios do que a tecnologia pode proporcionar. São histórias com estéticas que marcam gerações e gerações. No entanto, podemos observar como o estilo e a interpretação - assim como o repertório e o domínio de técnicas e tecnologia - podem influenciar nas questões visuais. Os dois filmes são adaptações da mesma história, com estéticas parecidas, mas épocas e produtos finais completamente diferentes.


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